A menina do outro lado*
Elas tinham a mesma idade, mas a que atendia no balcão tinha o rosto cansado de quem já viveu demais. A que fazia o pedido, por ingenuidade, falta de atenção ou ironia, tentava ser educada chamando a outra de “tia”. “Tia, me vê um pão de queijo?”
Nos olhos de quem recebia o dinheiro que não lhe pertenceria, uma faísca de raiva pelo tratamento “educado”, pelas horas de pé, pela condução até o trabalho, por estar ali, tão perto e tão longe daquilo que sonhava alcançar.
A menina do outro lado jamais saberia o preço daquele pão de queijo. A menina do outro lado nunca entenderia as histórias que levavam aqueles produtos até o balcão. “No débito”. “Vai querer a sua via?”
Entregou o pequeno papel, o comprovante do débito, aquele borrão que em pouco tempo perderia a cor. Um valor tão pequeno... A fila seguiu. A menina do outro lado retornou para a sua aula de anatomia. Levou consigo o alimento e o sonho que estava sobre o balcão.
* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
* A fotografia deste conto foi montada e editada por mim. A ideia era colocar os sapatos brancos e diferentes para marcar os dois lados da história, luz e sombra. Já a canção foi escolhida depois que escrevi o conto. Minha proposta era encontrar uma algo mais pesado, mas ao procurar por palavras-chave, fui apresentada a banda alemã Yellow umbrella e a música "The world is not fair", casamento perfeito para o que eu queria dizer. A música é a segunda faixa do álbum "Little planet", de 2007. Veio a calhar ser um reggae. Acho que deu à história um quê de cena de filme. rs.