

Amaro *

A Sorveteria da Ribeira ferve, especialmente aos domingos, quando a praça lotada combina com a imensa fila que se forma nos caixas e o amontoado de pessoas gritando sabores para os frenéticos atendentes com memória afiadíssima. É tanto rosto e tanto sabor que é inacreditável vê-los servir com tamanha presteza. Quem disse mesmo que baiano é lento? Tudo encanta, enche os olhos, os ouvidos, mescla-se com as notas adocicadas na ponta da língua.
Em frente à sorveteria, o Terminal Marítimo abriga barcos de vários tamanhos e o catamarã que leva passageiros às “ilhas do Caribe brasileiro”. Uma ilha particular chama a minha atenção. Acompanho o ritual de uma senhora que traz em um saco plástico algumas bugigangas, uma caixa de remédio vazia, a caixa para o dinheiro, o cartaz com a explicação de suas agruras e o papelão que ela ajeita como se fosse uma almofada para então se sentar.
O burburinho em volta se cala para mim e sou toda ouvidos ao que ela conversa sozinha. Escuto. Meu coração aperta.
“Ah, que cansaço da moléstia... Preciso sentar aqui.”
“Ah, porque antes, antes é que era bom. ‘Aria esta panela, Maria’, e eu ariava. Ariava que brilhava mais que sol! Era muito panelão.”
“E eu ganhava uma panela de cozido. Era cozido pra semana toda.”
“E eu comia, comia com gosto.”
“Era ‘Maria, lava essa roupa’, e eu lavava e deixava limpinha e eu era limpinha.”
“Agora, o que Maria faz agora?”
E suspende seu monólogo, olhos não sei onde em um passado que ela enxerga por dentro.
Um moço argentino se aproxima e como saída de um transe, ela explica que o dinheiro é para comprar remédio. Ela tem epilepsia. O moço oferece ajuda, ela retoma a ladainha.
O texto repetido nem parece dela, lembra a memória de quem veio antes, uma mãe, uma avó, iaiás. A herança permanece ali, naqueles olhos que fitam o nada e vez em quando marejam. As embarcações seguem seu fluxo, as histórias continuam e resta a curiosidade em descobrir o que mais sobrevive naquela ilha tão triste no meio da praça. Passageira, levo dela a lembrança e o gosto amargo daquele instante.
* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
* A fotografia utilizada para acompanhar esta história que, pessoalmente, não sei se associo ao conto ou à crônica, é de Christian Newman e pode ser encontrada neste site: https://unsplash.com/photos/A6O7pgc7vHg. Primeiramente, queria uma imagem metafórica de uma ilha, mas depois, pensando com mais cuidado, queria humanidade, muita humanidade para representar um pouco do sofrimento que vi estampado na senhora que inspirou meu escrito. Busquei fotos que mostrassem isso. A imagem desta senhora me remete a passado, lembrança, profundidade, dor... Uma dor que ela enxerga por dentro. A canção escolhida foi "Homeless" do álbum Graceland de Paul Simon. O álbum foi lançado em 1986 e enfrentou críticas porque alguns consideraram que o cantor estava furando o boicote dos artistas ao Apartheid. Poderíamos discutir se as intenções do artista foram ou não "nobres", mas pessoalmente, creio que o resultado artístico supera as polêmicas. "Homeless" tem letra do próprio Simon e de Joseph Shabalala, cantor e compositor sulafricano. A força do início da canção, cantada em zulu, é de arrepiar. A letra fala do sofrimento de quem está desabrigado. Estar "sem casa" é uma metáfora que significa muito quando se pensa na situação dos negros em qualquer lugar. A busca pela origem e pela identidade também. Enfim, esta música toca minha alma.