

Andante *

* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
O quarto alugado era no subsolo de um prédio. Não entrava luz e o ar vinha de um buraco (que ele não ousava chamar de janela) com vista para o fosso. Pensara em pintar uma paisagem na parede. O dono do imóvel não deixou. A única vantagem do lugar era poder ensaiar a qualquer hora. Não tinha ninguém por perto de madrugada.
Uma vez teve um gato, mas o bicho fugiu. Agora tinha um peixe, mas não sabia se conseguiria mantê-lo por muito tempo. O que tinha mesmo era solidão. Não reclamava, porque era bom estar sozinho para tocar e compor. No entanto, às vezes queria uma musa inspiradora de carne e osso para enfeitar seus versos. Quem sabe a moça do sinal? Impossível...
Na sua rotina de tocar no sinal perto do seu esconderijo, depois na porta do restaurante, depois onde conseguia ficar, descobriu a moça que saía todo dia no mesmo horário e para quem ele fazia sua melhor apresentação. Menos de 30 segundos e um olhar doce em retorno. Não era de amor, mas de encantamento pela música. Para um músico é quase a mesma coisa, uma espécie de declaração. Vez em quando, ela pagava pelo show. Se tivesse tempo para dizer mais que um obrigado...
Queria ter uma voz maravilhosa. Era afinado, mas quando escrevia poemas, compunha pensando em outros intérpretes. A formação clássica do violino vinha primeiro. Antes dos tormentos, da morte da família, do que acreditava e do emprego fixo, a orquestra era a sua casa. Depois, só restara o isolamento e a depressão, curada a duras penas com os trocados gastos em antidepressivos e nas cordas. Aquelas nas quais se apoiava, aquelas nas quais deslizava a crina gasta de seu arco.
Há alguns dias, pensava em dedicar à moça sua composição. Ela não apareceu por um tempo e quando ressurgiu, ele não teve coragem. Os olhos dela não prestaram atenção nele. E no outro dia e no outro... permaneceu alheia. Ele, intrigado com a indiferença. Quando finalmente foi notado de novo, estufou o peito, apontou para ela com o arco e entregou uma melodia inesquecível, impregnada de afeto e esperança. Os olhos dela marejaram e quando o sinal abriu, ela foi acordada pelas buzinas dos carros impacientes.
Ela foi embora e ele não esperava que retornasse. Estava quase resignado novamente à solidão quando a viu caminhando em direção a ele. O coração veio na boca e ele percebeu que não sabia mais lidar com aquele sentimento. Nunca pensou que a homenagem fosse ter algum resultado. Ela abriu um sorriso, cumprimentou-o e perguntou se a música era para ela de verdade. Sem graça, confirmou e disse também que era de sua autoria.
No breve e intenso diálogo, descobriram semelhanças. O encanto quebrado pela notícia que ela estava indo embora do país no dia seguinte. Ela entregou para ele o seu número de telefone e o endereço de e-mail. Ele não teve coragem de dizer que não tinha mais celular...
Ao voltar para o esconderijo, ao se ver no pequeno espelho de moldura alaranjada, o reflexo o encarou de maneira diferente. Depois de muito tempo, quis tirar a barba. Depois de muito tempo, quis se olhar nos olhos e se reconhecer. E o violino, chorado, saudoso e delicado, varou a madrugada. O som já não estava distante do mundo. A canção abriu frestas na dura parede, a propagação do sonho do que poderia um dia ressurgir...
* A imagem representada no conto "Andante" é a combinação de duas fotografias disponíveis em: https://pixabay.com/pt/violino-violinista-m%C3%BAsicas-cl%C3%A1ssico-374096/ e http://www.radiopioneira.com.br/noticia/46666/%E2%80%8Btangara%3A-novos-semaforos-entram-em-funcionamento-na-av-tancredo-neves. A canção é um cover no violino da canção "Can't help falling in love", interpretada por Elvis Prestley no filme Blues Hawaii, de 1961. A original é francesa, uma versão de "Plaisir d'Amour", do compositor francês de origem alemã Jean Paul Martini. O violinista da versão que escolhi é Daniel Jang, um músico chino americano cujos covers de canções consagradas são lindos! Vale procurá-lo no Youtube e curtir o canal.