

(Des)encontros *

* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
Partilhavam do desconforto do mesmo transporte público. Três paradas separavam as duas histórias. A que pegava o ônibus na altura da quadra 10 morava com os três irmãos e a mãe em uma casa de fundos. A que entrava na 15, tinha padrasto, mãe, quatro meio-irmãos e uma irmã que fugira de casa, a casa da mãe.
Sentiam falta uma da outra quando não se viam na condução. Mesmo sem terem ainda se apresentado, já haviam trocado “olás” e sabiam ler no semblante os dias ruins. Nunca tiveram a oportunidade de conversar, o excesso de pessoas entre elas impedia qualquer aproximação de fato.
Uma brigava para ajudar no aluguel mais barato que a mãe conseguira encontrar. A outra lutava para guardar dinheiro e ir atrás da irmã sumida e da verdade que ansiava por descobrir ao reencontrá-la. No fundo, tentavam mesmo era sobreviver no ambiente inóspito no qual residiam a contragosto.
Em um dia de coincidências, pegaram o mesmo ônibus em um horário incomum e dividiram o mesmo banco. O olá se estendeu e quando perceberam já estavam desabafando sobre respectivas dores.
A que dividia o aluguel com a mãe contou sobre sonhos de faculdade e a impossibilidade de concretizá-lo. Talvez ajudasse o irmão mais novo, o gênio da família que pretendia ser engenheiro.
A da irmã perdida falou da dificuldade em conviver com o padrasto e insinuou sem querer que talvez a fuga tivesse sido provocada por isso e algo mais. Calaram-se por alguns instantes como se tivessem partilhado mais do que um segredo.
Comentaram então sobre saudades de quem partira, o pai de uma, a irmã da outra. Descobriram que tinham amigos em comum e uma se lembrou de uma conversa enviesada sobre ajudar alguém a sumir no mundo.
Na angústia por uma pista, a que descia na 15 desceu antes para descobrir mais sobre a conversa e sobre o que mais o amigo saberia. Bateram à porta de um possível reencontro. Ele não morava mais ali e ninguém sabia para onde teria ido.
Despediram-se desapontadas. Metade do caminho percorrido de volta para a mãe, os meio-irmãos e o padrasto foi sob intensa chuva. A densa noite que se seguia talvez fosse mais longa do que o esperado.
“Runaway train never comin' back
Wrong way on a one way track
Seems like I should be getting somewhere
Somehow I'm neither here nor there...”
* Neste conto, a imagem escolhida estava nos meus arquivos há muito tempo e não consegui achar ainda onde a encontrei. Assim que encontrar, posto o endereço aqui. Nesta história, creio que ela funciona como uma imagem poética e muito triste que mostra como é viver com um fantasma que se perdeu na paisagem, no mundo, na multidão... A música, "Runway train", da banda Soul Azylum, é sobre crianças desaparecidas. A canção é parte do álbum "Grave Dancers Union", lançado em 1992. Talvez seja uma das canções que considero mais tristes... Embora o ritmo não seja dos mais melancólicos, há nela um tom tão grave e profundo que nunca me deixou muito em paz ao ouvi-la. Na verdade, sempre foi uma canção que evitei escutar.