A menina se olhou no espelho e tudo que ela viu parecia quebrado. Um rosto muito anguloso, um porte muito alto, uns olhos muito curiosos, um cabelo muito cheio... Em volta, muita gente dizia que tudo nela era exagerado. Nunca se deu conta que muitas humilhações não são apenas críticas, mas formas de tirar uma ameaça do caminho... Se ela descobrisse que podia tudo...

​

O tempo e as vozes fizeram-na se encolher. Os ombros e os olhos se voltaram para o chão. Aos poucos, descobriu que falava bem, que entendia coisas que os outros não percebiam e, quando olhava em volta, via cores que alguns não notavam. A voz não a deixou se encolher tanto quanto pensava em fazer. Sentia necessidade de pôr para fora o turbilhão que vivia dentro. Era tanta coisa para sentir e contar... Queria cantar o mundo!

​

O tempo e as vozes fizeram-na falar, mas duvidar da força do próprio canto. Tantas vozes por aí, tantos tons mais bonitos, tantos timbres mais fortes... Melhor silenciar. E foi se calando, ouvindo, ouvindo, e falando apenas quando se sentia confortável. Mas a vida não se contenta com quem é morno e joga as pessoas nas fornalhas do que elas mais temem...

​

O tempo a levou para entender a água, seu amor e medo de infância, para descobrir que ela tinha a mesma natureza inquieta, teimosa e profunda. Sempre a admirava de longe, mas se encontrou refletida nela. Olhou-se naquele espelho, viu um porte muito alto e alguém contou que isso era muito bom! E ela, depois de tanto tempo, viu-se querendo abrir os ombros e enfrentar a vida de peito aberto. Para completar, ainda lhe ofereceram asas! Quando viu, estava querendo alçar voos sob um lago...

​

Mas ainda tinham as vozes... Elas ainda perturbavam. Precisou aprender a ouvir o silêncio do lago e mandar as vozes se calarem. E começou a ouvir o barulho das asas, do movimento do voo, do fio de riacho que passava por baixo... O exagero de outrora era força, era intensidade... Seu canto, um acompanhamento para a melodia, o ritmo e o andamento que a água oferecia. Quantas canções compôs desde então... Quantas sinfonias teve coragem de revelar...

​

Às vezes é preciso mudar de espelho, de frequência de rádio, de lugar... Sempre é preciso fazer as pazes com a menina no espelho quebrado. Contar que aquela imagem não era ela, mas quem eles queriam que ela fosse... E talvez não lhe tenham perguntado quem ela queria ser! E ela queria ser feliz! E a felicidade dela nunca esteve em ter, mas em ser! E ela se construiu e se reconstruiu aos poucos... E chegou até aqui. E quer ir além... E hoje, talvez a construção esteja mais próxima do que ela sonha. Talvez...