

"Eu rabisco o sol que a chuva apagou" *
* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
O brinquedo favorito era o quadro de giz. Usava-o para dar aula às bonecas. Sempre achou interessante o ofício de falar sobre o que mais gostava, então lecionava sobre bichos, especialmente as borboletas. Desenhava-as no quadro com os gizes de cores diferentes: amarelas, cor-de-rosa, azuis, verdes, laranjas e brancas.
As bonecas todas adoravam as lições, sempre se mostravam interessadas e questionadoras. “Tem borboleta de toda cor?”, “Qual é a maior borboleta do mundo?”, “Quanto tempo elas vivem?”. Borboletas viviam pouco, ouvira falar. “São tão suaves, não é?”. Acabara de aprender a palavra e gostava de associá-la aos frágeis cristais alados.
A mãe havia lhe dado um colar de madrepérola com formato de borboleta e ela usava constantemente. Um dia, numa brincadeira de escola, a corrente do colar arrebentou e a borboleta se partiu no chão. Vida breve. Pranto interminável. Ficou inconsolável por alguns dias. Tentou colar o que restara, mas nem tudo na vida tinha conserto.
Anos mais tarde, no aniversário de dezoito anos, os pais lhe deram outro colar, uma nova borboleta, mas dessa vez em dourado e pedras azuis turquesa. A alegria incontida do símbolo da decisão pelo curso na universidade, pelo caminho novo que começaria a trilhar, pelas pessoas a quem, imaginava, um dia iria contar como tudo começou.
No dia em que assumiu sua primeira turma, um sexto ano do ensino fundamental, contou sobre a paixão pelas borboletas. Na primeira fila, um garoto franzino olhava para ela, encantado e triste. Duas ou três aulas depois, aproximou-se para conversar. “Professora, eu também adoro borboletas...”. “Que bom! Sabe que elas são muito importantes para distribuir sementes por aí?”. “É? Eu gostava delas porque minha irmã pequena também gostava...”. “Gostava? Ela não gosta mais?”
A constatação tardia da pergunta inoportuna e a falta de jeito de lidar com a dor de alguém tão jovem... “Minha mãe disse que ela virou anjo, mas acho que gosto mais de pensar que ela foi como uma borboleta mesmo. Elas vivem pouquinho, né?”. “Sim, mas enquanto vivem são tão importantes...”. “É mesmo? Valeu, professora, estou gostando das suas aulas!” E saiu como um pé de vento. Ela ficou ainda meio estática, limpou os olhos com as mãos sujas de giz, limpou o pó no jaleco e seguiu para a turma seguinte, borboleta entre flores de distintas cores e formas.
* Antes de mais nada, o título entre aspas é exatamente o verso da letra composta por Renato Russo que me inspirou a escrever este conto. Fiquei pensando no quanto era uma imagem linda e, divagando sobre a letra, surgiu a história. Para ilustrar a poesia da música e da história, busquei uma imagem que fosse delicada, tivesse borboletas e casasse com o espírito de alguém cheio de sonhos. Encontrei esta moça quase etérea na página https://br.pinterest.com/pin/432416001695475067/?lp=true. Estou em busca de quem desenhou. A canção "Giz", da Legião Urbana, é a faixa 11, do álbum "Descobrimento do Brasil", lançado em 1993. Letra de Renato Russo e música de Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos.