

Love Songs*

* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
O ano era 1995 e ela tinha vinte anos. Já tinha se apaixonado algumas vezes, mas nada tão intenso assim. Aquela velha história de achar que morreria de amor por alguém até encontrar o próximo. Romeu antes de topar com a Julieta. Na verdade, por ele, ela nem queria se apaixonar, era novinho demais. A ideia boba de que dois anos de diferença fariam muita diferença no futuro... Ou à época mesmo. Bobagens. Quando viu, já não tinha jeito. Combinavam demais, conversavam demais, se olhavam demais.
E nos olhares, ela achou ter visto o mundo e quis se convidar a desbravar aquela imensidão azul. Um ano de convivência próxima, uma eternidade para criar coragem e tomar uma atitude. “It’s now or never”, diria o Elvis. Não conseguiria falar que estava apaixonada assim na cara dele. Na verdade, mal conseguia falar coisas conexas quando se encontravam. Vivia morrendo de medo de dizer bobagens perto dele.
Amigos cupidos sempre eram uma ideia complicada e o último que se oferecera fizera o favor de dizer: “Falei com ele. O negócio com você é só amizade mesmo, mas eu...” e se ofereceu para consolá-la. Teve ódio do falso cupido e ficou ressabiada. “Melhor não fazer nada, vai que é só amizade mesmo”. O problema era a angústia. As noites sem dormir, a saudade imensa, a vontade de vê-lo mais vezes... Melhor nem ser amiga se for para viver assim.
Decidiu gravar uma fita cassete com canções que dissessem o que ela não tinha coragem de falar. Seria uma forma bonita de declaração. Semanas de suplício se seguiram. A seleção das canções. As ouvidas quando estavam juntos, as cantadas por ele, as que queria que ele conhecesse e o medo, gigantesco, das letras. “Muito direta, muito sutil, muito exagerada, muito indiferente, muito melosa, muito linda (para um casamento), muito velha, muito agitada, muito nada a ver...” Muitas opções.
Gravou. 14 canções. 7 de cada lado. A letra caprichada nos espacinhos minúsculos do encarte. Um poema para acompanhar. Um coração na boca. A fita passeando na bolsa até o dia da coragem. Queria ter entregado quando estivessem a sós. Não teve jeito. Numa roda de amigos, o mais natural que conseguiu, entregou. “Selecionei umas canções que, acho, você vai gostar”. Ele guardou no bolso do casaco. Uma amiga olhou desconfiada. Ela manteve a cara de paisagem, embora estivesse com medo de que pudessem ouvir de fora o coração descompassado dentro do peito.
Semanas de silêncio se passaram. Ela deve ter emagrecido uns bons quilos de ansiedade... Encontravam-se ainda, mas ele a evitava. Entendeu que fizera uma burrice. Ou não. “Melhor assim. Não era para ser...” Até o dia que se viram frente a frente. Ela quis fugir. Fingiu uma ida ao banheiro. Na verdade, era para olhar a cara branca no espelho depois de vê-lo se aproximar. Na verdade, era para respirar fundo e ver o que viria. Criou mil expectativas nos poucos segundos na frente do espelho. Imaginou abraço, beijo e as justificativas para a ausência de resposta.
Ele estava esperando quando ela saiu.
“Nossa, aquela fita. Gostei muito. Bacana aquela versão daquela música... Não conhecia.”
“Que bom você ter gostado.”
“Então tá. Obrigado por ter me dado.”
Friamente se despediu dela. Como se as canções não tivessem letras, como se não falassem de amor. Como se a fita não tivesse poesia, como se o poema nem tivesse ido. Se um buraco tivesse se aberto no chão sob os pés dela teria sido melhor. Ligou para a mãe e disse que demoraria a voltar para casa. Entrou no carro, colocou a mesma fita para tocar. Fizera uma cópia, afinal, seriam canções especiais aos dois. Dirigiu sem rumo por horas. A vista embaçada.
Parou um momento e decidiu jogar fora aquelas canções. Tirou com ódio toda a fita magnética da caixinha. Não conseguiu cortá-la. Queria ter dado conta. Voltou para a casa, evitou a mãe, entrou no quarto e ligou o rádio. Na estação sintonizada era hora de um programa chamado “Love Songs”. “Hoje não”. Um minuto de silêncio pela morte do que nem começou.
* A imagem desta fita cassete que ilustra o conto foi encontrada originalmente nesta página https://www.iheartradio.ca/majic-100-3/shows/mixed-tape-love-songs-1.3621720 e depois modificada por mim. Queria algo que indicasse um rascunho, um desenho não terminado e, ao mesmo tempo, feito sem o devido capricho. A canção escolhida reflete a esperança do conto, "Room in your heart" da banda inglesa Living in a box, tem uma letra linda que indica que existe um lugar ainda inexplorado no coração da outra pessoa e o amor parece no ar. Creio no entanto que o que fica de fato é a primeira estrofe... "Room in your heart" foi lançada em 1989 pela banda Living in a box no álbum "Gatecrashing".