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Meu lar é na rua*

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A jangada voltou só - Dori Caymmi
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* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto. 

A resposta na ponta da língua: “Casarão dos azulejos azuis na Cairu”. Foi assim que Francisco respondeu ao semelhante que também transportava um carrinho de supermercado com parte da casa dentro. Debatiam uma visita mútua. Chico contava as vantagens da casa nova, a mobília, a decoração, o espaço... Só ficava ruim à noite, “Cidade Baixa, sabe como é...”. O outro já tinha tentado uma rua do Pelô, mas agora andava difícil, porque estavam arrumando o lugar. “Turistas”.

 

Sabiam que todo lar era temporário? Sim e não, porque a maioria das pessoas guarda um apego dentro e, às vezes, finca raiz até na brecha do cimento. Por isso, a casa de Francisco na Cairu era toda decorada de lembranças, aquisições e presentes de amigos reais e imaginários. Quando a dor apertava e o álcool subia, era possível descobrir os detalhes dos objetos que moravam nas estantes de fios e nas colunas vermelhas.

 

Bichinhos de pelúcia para quando reencontrasse a filha. A cabeça do Homem Aranha com um chapéu engraçado, porque o sobrinho gostava do herói. Meio cata-vento, uma flor verde, ferramentas, mesa de centro no canto, banco para a visita e a cama arrumadinha com um cobertor em cima. Tudo alinhado e fino. Tudo combinado com o casarão, descascado ainda, mas em breve bonito.

 

“Estão reformando a minha casa!”.  O semelhante, desabrigado da rua do Pelourinho, acreditou, deu os parabéns. “Vou visitar, Chico”. E se despediram. Um procurou novo abrigo, enquanto o outro voltou para casa. A vida dos dois num fio como a decoração cheia de histórias. Se alguém se sentasse para perguntar ao Francisco onde encontrara ou ganhara cada coisa, ouviria tanto... Seria mais divertido do que as estantes de Jorge Amado, as vitrines do lado de fora da casa onde ele e Zélia guardavam lembranças do mundo. Amado tinha muita coisa, Chico não era amado, mas também tinha lembranças. Se soubesse escrever...

* A canção que foi escolhida para acompanhar o conto é de Dorival Caymmi e se chama "A jangada voltou só". Ela foi lançada em 1943 em um compacto, no qual no lado A ouvia-se "É doce morrer no mar" e, no lado B, a canção citada. A interpretação escolhida é do filho do cantor/compositor: Dori Caymmi. A fotografia foi tirada por mim em janeiro de 2019 em Salvador. Foi uma das cenas que me chamaram a atenção na cidade. Infelizmente, não conheci o morador daquele espaço, mas imaginei sua possível história. Dele e de outros Franciscos espalhados por aí. 

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