

O medo das horas*

* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
“Me solta! Me larga! Quero andar sozinha!” E batia nas mãos que tentavam apoiá-la. “Me deixa!”, bradou com força. E cambaleou. A quase queda evitada pelas mãos da filha e do neto. Apoiada neles a contragosto, a senhora abriu em pranto. Uma menina, uma criança em pirraça para os que olhavam em volta.
“Velho é tudo teimoso mesmo”, alguém passou comentando sem nenhuma discrição. A senhora quase morta de vergonha, filha e neto atordoados. Nos olhos desbotados pelo tempo nem sombra de alegria, apenas um mar convulso que ela agora tentava conter. Conduziram-na a um dos bancos no meio do corredor do shopping. Sentada, ela parecia tão miúda...
Miúda também era a voz com que pedia desculpas à filha e ao neto. Os dois de semblante carregado e olhar úmido. Não sentiam raiva nem vergonha agora, apenas um sentimento imenso de impotência. Como voltar o tempo? Como impedir o destino? Como bloquear enfermidades? Como ter de volta o esteio da casa, a voz firme que guiava as ações da família?
“Vó, a senhora quer que eu pegue a bengala no carro?”. O rosto tenso encarando o chão, os pezinhos débeis depois do susto. “Pode... Desculpe à vó. É muito triste ficar velho e depender dos outros...” Ele engoliu o choro. Tentava compreendê-la. Imaginava como seria duro perder a autonomia, a liberdade.
Uma voz lá dentro dele repetia “Não quero ficar velho”, como se fosse uma escolha, uma opção. Como se com o passar dos anos não fôssemos nos agarrando à vida do jeito que ela viesse. Como se o mais difícil na vida da maioria de nós não fosse o medo da morte.
* A imagem escolhida é uma fotografia gratuita do site Wix. A ênfase na bengala era o que gostaria de propor, porque pressupõe reflexões que são difíceis de digerir e nos remetem, normalmente, à inevitabilidade do destino. A música de Peter Gabriel, "I grieve", fez parte da trilha sonora do filme "Cidade dos anjos", de 1998, e foi relançada no álbum Up em 2002. Desde que ouvi no filme, considero uma canção profundamente melancólica que me faz refletir muito sobre a passagem do tempo.