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Presépio vazio*

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Silent night - Sinéad O'Connor
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* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto. 

No quarto do irmão mais velho, no alto do armário com naftalinas, minha mãe guardava a imensa caixa de plástico com os enfeites de Natal. A árvore desmontada e embrulhada em sacos de plástico azul também morava lá em cima. Bastava passar o feriado da Proclamação e ela começava a (des)organizar a coiserada.

 

Era como uma grande boneca russa. A caixa imensa abrigava caixas menores que escondiam outros pequenos tesouros. Pelo menos, era isso que ela enxergava quando abria, uma a uma, aquelas relíquias.

 

“Eu e seu pai compramos essas bolas perto da casa da sua tia Joana. Estão meio desbotadas, mas acho tão bonitas! Não são?”

 

E pedia a anuência de quem estivesse assistindo. Era assim para as bolas de diferentes cores e tamanhos, os festões, as miniaturas de presentinhos, estrelas, bonequinhos de neve e uns anjinhos de cara estranha que minha avó havia comprado em algum lugar distante. A árvore da nossa casa estava longe da beleza daquelas de revistas, mas quando as lâmpadas do pisca-pisca eram acesas, sabíamos que a atmosfera em casa mudava.

 

Os olhos da minha mãe se enchiam de água e os nossos, pupilas dilatadas, ficavam pontilhados de expectativas. Os sentidos se aguçavam. Olhos atentos para a entrada de qualquer pacote suspeito, olfato e paladar conectados à cozinha, ouvidos sintonizados nas conversas dos adultos para desvendar segredos sobre presentes e pessoas que poderiam aparecer na ceia.

 

Naquele ano, uma dessas aparições foi o ponto dramático da festa. Um tio que nem eu nem meus irmãos havíamos chegado a conhecer apareceu para a ceia. Ainda não era meia-noite, mas todos os aguardados já estavam lá e, quando a campainha tocou, houve estranhamento geral.

 

A tia Joana, da casa perto da loja dos enfeites desbotados, foi quem atendeu a porta. Pálida como nunca, ela quase desmaiou depois de emitir um grito agudo de “Mãe, corre aqui!”. Uma comoção coletiva inundou a sala de choro, soluços e abraços demorados. Eu, meus irmãos e primos de olhos arregalados no canto da sala.

 

A aparição era o tio do qual sabíamos o nome, sussurrado em conversas dos adultos, mas que todos julgavam morto. Eu e meus irmãos não tínhamos ideia de quem ele tinha sido, mas descobrimos naquele dia a palavra ditadura. Ela já existia nos sussurros que tentávamos decifrar, mas nunca havíamos entendido seu significado.

 

Dali em diante, nenhum Natal foi o mesmo, porque o tio não era o mesmo, porque as histórias que ele contava carregavam uma dor nunca digerida, porque naquele dia a família foi forçada a entender que o luto tem diversas faces... As luzes da árvore não foram suficientes para iluminar os anos de ausência e as histórias perdidas. As luzes de Natal perderam o brilho.

* A imagem escolhida foi tirada deste site: https://bit.ly/2ZtFfRT. A ideia em colocar o presépio vazio tem a ver com a espera do filho e da angústia de ver um berço vazio. Imagino sempre como deve ser horrível não saber de alguém desaparecido... Não consigo mensurar esta dor. Às vezes, penso que conviver com a morte pode doer menos. A canção escolhida é um clássico de Natal que acho extremamente melancólico e ficou mais triste ainda na voz de Sinéad O'Connor. A canção foi lançada no álbum "I Do Not Want What I Haven't Got" (1990) e como single Silent Night (1991).

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