

Quem sabe?*

* As informações sobre a canção e a imagem estão logo abaixo do texto.
Talvez fosse a brisa do mar naquele final de tarde estonteante. Talvez fosse o céu mudando o tom de azul para a chegada da noite. Talvez fosse a beleza das cores daqueles casarões tão antigos. Talvez fosse o desnível das pedras sob os meus pés na caminhada de um dia todo e o bálsamo daquelas notas e o vento e o mar e o céu e a saudade... O que importa é que num final de tarde de um sábado de janeiro, uma orquestra de câmara e dois jovens cantores líricos me transbordaram de luz.
Por volta de umas cinco da tarde, no Largo do Cruzeiro, depois de muito descer e subir as ladeiras multicoloridas do Pelourinho, percebi a movimentação de cadeiras, palco, instrumentos e músicos. Haveria uma apresentação da orquestra de câmara. Só perco apresentações musicais por motivos extremos ou falta de afinidade com o tipo de música tocada. Ali, ouvir uma orquestra, por menor que fosse, era um presente magnífico.
O repertório da apresentação me era familiar e não pude evitar a mímica dos trechinhos das letras de Nessun Dorma, Carmen, Libiamo, O sole mio... ou o “Quem sabe?” de Carlos Gomes. Talvez nunca tenha escutado esta canção com tanta saudade, com tanto afeto, com tanto ardor... Os versos “tão longe de mim distante. Onde irá, onde irá o meu pensamento” ecoaram dentro de mim feito uma oração. E o pensamento não foi para um amor em forma de pessoa, mas para o meu amor à música.
Quando vi, já estava de olhos marejados ouvindo a voz dulcíssima da soprano e o violoncelo, o instrumento que mais amo em uma orquestra. Relembrei que queria muito, mas muito mesmo aprender a tocá-lo. O “tão longe”, o “onde irá o meu pensamento” me levaram de volta ao tempo em que tinha retomado esses estudos... Ao tempo que não tive tempo de buscar o meu sonho...
E as notas ouvidas me puseram no colo e me embalaram e os versos “Quisera saber agora se esqueceste o juramento” e “Se ainda é meu teu pensamento” me questionaram: “E agora? Você vai deixar este sonho, este amor tão grande que te inunda fugir de novo?”. E prometi mais uma vez a mim mesma que no retorno à Brasília iria tentar voltar a estudar, a aprender o meu instrumento favorito. Quem sabe no dia em que souber tocá-lo direito não seja o “Quem sabe” de Carlos Gomes que reverberará no meu peito?
Ao final do concerto, o maestro, que me vira debulhar e cantar um ou outro verso, me cumprimentou, beijou a minha mão e me perguntou o que eu tinha achado do concerto. Elogiei-o e a orquestra com o coração cheio de amor, mas não tive coragem de contar a ele que, na verdade, o concerto havia sido um reencontro comigo mesma. Tantos sonhos embrulhados em canções. Quem sabe ainda consiga realizar o meu nesta vida.
* A fotografia que acompanha o conto é realmente da apresentação que tive o prazer de assistir em 2019. Ela está na propaganda de 2020, como podemos ver a seguir: http://pelourinhodiaenoite.salvador.ba.gov.br/index.php/32-agenda/musica-musical/1272-popelo-concerto-de-verao-com-orquestra-de-camara-de-salvador-ocsal. No entanto, creio que tenha sido tirada mesmo em janeiro de 2019. Jamais me esqueceria daquela tarde e me lembro claramente da roupa do maestro e dos cantores. Uma memória que ficará em mim.
A canção "Quem sabe" é do compositor brasileiro Carlos Gomes. Nascido em Campinas, em 1836, ele foi o mais importante compositor de ópera brasileiro. Todo mundo acaba lembrando dele apenas pela ópera O Guarani (1870), cuja abertura é a vinheta do programa de rádio "A Voz do Brasil". Contudo, ele tem várias composições, entre elas esta canção que acho linda e foi composta em 1859. Gostaria de ter colocado a versão a que tive o prazer de assistir. Infelizmente (ou felizmente), não gravei a apresentação e se tivesse feito, a qualidade seria duvidosa. Por isso, escolhi uma das minhas versões favoritas, a interpretação de Ney Matogrosso. A canção está no álbum "Pescador de pérolas", de 1987 (obra maravilhosa, a propósito).